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Apesar de sermos uma única espécie, nós humanos não temos um comportamento único. Os seres humanos costumam se organizar em grupos de diferentes tamanhos e cada grupo pode ter comportamentos bem peculiares. Se você fosse um extraterrestre chegando pela primeira vez na Terra, veria a diversidade que reside em nossa espécie. Alguns grupos escolhem seu líder para governar, outros deixam que uma família os governe. Alguns grupos acreditam em um único deus, outros acreditam em vários deuses. Alguns grupos escolhem comer com garfo e faca, outros escolhem comer com hashis.

Os seres humanos se organizam em sociedades e cada uma tem características únicas quando olhamos para aspectos como religião, política, organização social, dieta etc. Um fato interessante que chama a atenção é que a língua se comporta como uma sociedade em vários aspectos.

 

O primeiro aspecto é na diversidade. No planeta Terra, existem inúmeras sociedades, como os japoneses, os chineses, os coreanos, os brasileiros, os franceses, os italianos etc. De forma semelhante, também existem inúmeras línguas, como o japonês, o chinês, o coreano, o português brasileiro, o francês, o italiano etc. A língua pode ser inclusive um dos fatores que distinguem uma sociedade da outra, mas esse não é sempre o caso, pois podemos ter duas sociedades que falam a mesma língua como os mexicanos e os argentinos.

 

Outro aspecto relevante é que, mesmo dentro de uma mesma sociedade, o comportamento dos seres humanos não é idêntico. Se tomarmos, por exemplo, a sociedade brasileira, teremos vários subgrupos como os roqueiros, os skatistas, os surfistas, os cristãos, os umbandistas, os paulistas, os gaúchos, etc. A língua tem esse aspecto heterogêneo dentro de uma sociedade. Perceba que os roqueiros não falam igual aos skatistas ou aos surfistas. O português de um paulista não é igual ao português de um gaúcho. Você pode ouvir uma pessoa desconhecida conversando na rua e pela maneira que ela fala saber que essa pessoa é cristã.

 

Quando falamos de Língua Portuguesa, é comum pensarmos naquele objeto que está descrito nas gramáticas e manuais. Mas a língua portuguesa não é única, existem vários “portugueses” falados no Brasil, pois o português brasileiro de um subgrupo não será igual ao português de outro subgrupo. Isso não é algo exclusivo da nossa língua, mas de todas as do mundo. O inglês do Texas é diferente do inglês da Califórnia, que não é o mesmo que o inglês de Nova Iorque, do Canadá, da Índia, da Inglaterra, da Austrália etc. O inglês falado por uma pessoa branca nos Estados Unidos não é o mesmo inglês falado por uma pessoa negra. Então, o português varia de acordo com quem está falando e o inglês também.

 

Essa variação é vista em todas as línguas do mundo, pois é uma propriedade intrínseca a elas. Muitos tentam lutar contra essa variação e pregam que devemos falar todos iguais, mas esse movimento é inútil. Seria possível fazer todos gostarem das mesmas músicas? Comerem a mesma comida? Praticarem o mesmo esporte? Todos esses aspectos fazem parte da nossa identidade, da mesma forma que a variedade de português que usamos. Sendo assim, tentar fazer com que todos falem do mesmo jeito é tentar anular um aspecto na nossa própria identidade.

 

Mas outra característica que podemos encontrar nas sociedades é sua dinamicidade. A sociedade brasileira de hoje não é a mesma dos anos 90, dos 80 ou de 1900. Os nossos costumes mudaram, as roupas mudaram, a nossa composição familiar mudou, a tecnologia mudou e, adivinhem, a nossa língua também mudou. Se lermos a carta de Pero Vaz de Caminha quando chegou ao Brasil, veremos que o português empregado nela é diferente do português empregado por uma carta escrita por Machado de Assis que, por sua vez, é diferente do português que usaríamos em um e-mail para a escola.  

 

Antigamente, os homens usavam suspensórios para segurar as calças e, atualmente, é mais comum que os homens usem cintos para exercer essa função. De maneira semelhante, antigamente usávamos o pronome ‘vós’ para nos referirmos a um grupo de pessoas com as quais estamos falando e, atualmente, usamos ‘vocês’. 

 

Por muito tempo, as mudanças nas línguas não foram vistas com bons olhos. Os gregos, por exemplo, criaram um conjunto de regras às quais todos os falantes deveriam seguir para evitar essas mudanças, que eles consideravam uma “corrupção da língua”. O livro contendo essas regras foi chamado de gramática e, desde então, é essa concepção de gramática que é difundida no ensino.

Entretanto, as mudanças não deixam uma língua pior. Voltando ao exemplo dos suspensórios e cintos: sabemos que a função de ambos era a mesma (segurar as calças), mas a troca de um pelo outro se deu devido à preferência dos usuários. De maneira semelhante, a troca de ‘vós’ por ‘vocês’ não implica que a língua ficou pior, mas que os falantes foram gradativamente preferindo a segunda forma até que a primeira deixou de ser empregada em quase todos os contextos.

 

Todas as línguas mudam, sem exceção. O inglês de hoje não é o mesmo inglês de 500 anos atrás. O grego de hoje é muito diferente do grego de 2 mil anos atrás. A mudança também é uma característica intrínseca às línguas, da mesma forma que fazer mel é uma característica das abelhas. Desse modo, tentar fazer com que uma língua não mude  é equivalente a tentar impedir  que abelhas façam mel. 

 

A razão da língua e a sociedade terem tantas semelhanças é porque a língua é parte da sociedade. Sendo assim, não podemos estudar uma língua e ignorar o seu lado social. Uma língua não existe isolada no vácuo. Por isso, é impossível analisarmos e entendermos uma língua sem olharmos para seus falantes.

Texto de Luiz Fernando Ferreira e Maria Eugênia Martins Barcellos
Maio de 2022

A língua é como uma sociedade

Image by mostafa meraji
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