top of page

O nosso corpo, como também o de outros animais, vem pré-programado para diversas funções. Essa pré-programação significa que o nosso corpo vai fazer certas funções e passar por certas etapas que fogem do nosso controle. Elas são biologicamente determinadas. Por exemplo, os nossos corpos estão programados para passar pela puberdade, a fase de nossas vidas nas quais as espinhas e os pelos em certas regiões do corpo aparecem.

Apesar de isso acontecer com os nossos corpos, é algo sobre o qual não temos nenhum controle. Para alguns, essa fase ocorre mais cedo, para outros, mais tarde. Outro exemplo que podemos dar são os nossos dentes. Eles começam a nascer quando somos ainda bebês independente de nossa vontade. Esses primeiros dentes são chamados de dentes de leite. Quando somos crianças, eles dentes costumam cair e serem substituídos por outros dentes. E não temos controle sobre nada disso. Na grande maioria dos casos, não podemos decidir quando os dentes de leite ficarão moles e nem quando vai chegar a hora de nascer os nossos permanentes. Além disso, o nosso corpo está programado para realizar essa troca de dentes apenas uma vez, ou seja, se você perde um dente permanente, ele não será substituído por outro.

 

Mas por que estamos falando de um período de transição  e de dentes em uma aula sobre língua? Simples, meus caros e minhas caras. Porque a nossa língua é como os nossos dentes, mas isso é algo que a gente nunca parou para prestar atenção. Da mesma forma que não temos controle sobre quando os nossos dentes vão nascer, não temos controle sobre nosso aprendizado da língua. Você já parou para pensar em como você aprendeu a falar português brasileiro? Você precisou ir para a escola? Você precisou de um professor da língua? Precisou de livros ou lições? Se você é falante nativo de português, provavelmente não.

 

Isso ocorre porque o nosso corpo está programado para aprendermos uma língua quando somos criança e a gente simplesmente aprende, sem precisar de lições, de escola; é um processo tão fácil e natural para nós quanto começar a andar. Por esse motivo, muitos linguistas preferem não falar em aprender uma língua materna, visto que o aprendizado é algo que exige certo esforço, como andar de bicicleta. Aos cinco anos, qualquer criança já possui pleno domínio da sua língua materna, sem precisar tê-la aprendido. Por esse motivo, dizemos que as crianças adquirem a língua, ou seja, passam pelo processo de aquisição de linguagem.

 

Vimos na aula anterior que os animais não têm língua e nem linguagem, apenas um sistema de código que é bem básico. Mas porque será que só os seres humanos falam? Pense nas propriedades que são únicas de certos animais. Por que todas as aves nascem com asas, todas as aranhas nascem com oito patas e todos os patos nascem com bico? Essas características são determinadas geneticamente, ou seja, está no DNA dos patos terem bico, no DNA das aranhas terem oito patas e no dos pássaros nascer com asas. Então, o processo de aquisição de linguagem, que é único da espécie humana, também está codificado em nosso DNA. 

 

O nosso cérebro possui certas áreas nas quais processamos a linguagem. Duas dessas áreas são a área de Broca e a área de Wernicke. Isso significa que, se você sofrer algum tipo de lesão nessas áreas, a sua capacidade de falar ficará comprometida. Então, alguns linguistas postulam que o nosso cérebro possui um órgão específico para aprender línguas, chamado faculdade da linguagem. 

 

Quando somos ainda bebês, a faculdade da linguagem fica responsável por captar as sentenças que ouvimos. A partir dessas sentenças, ela descobre qual a gramática de nossa língua. Por exemplo: quando uma criança bem novinha escuta “A chapeuzinho ama a vovó”, a faculdade da linguagem usa essa e outras sentenças para determinar que, na gramática do português, a ordem mais habitual da construção de uma oração é sujeito (“A chapeuzinho”), verbo (“ama”) e objeto (“a vovó”).

Um fato que chamou a atenção dos linguistas é a agilidade com que as crianças aprendem a falar. A gramática de uma língua é algo muito complexo. No entanto, uma criança de cinco anos pode não saber coisas que são aparentemente mais simples, como ver as horas, saber a ordem dos dias da semana ou ainda amarrar os sapatos, mas já ser quase fluente em sua língua materna. Para explicar a rapidez da aquisição de uma língua, alguns linguistas propõem que os seres humanos já nasçam com uma gramática básica na cabeça. Essa gramática poderia, por exemplo, estipular que todas as sentenças precisam de um verbo. Se todos os seres humanos já nascem com ela, ela seria uma espécie de gramática universal.  

 

Com base na discussão acima, podemos afirmar que os dados linguísticos que ouvimos quando crianças não são responsáveis por criar uma gramática do zero na nossa cabeça, mas só ajudam a determinar quais elementos são específicos da gramática da língua que estamos aprendendo. Por exemplo, a gramática universal estabeleceria que todas as sentenças têm verbos, mas o contato com os dados do português brasileiro faria a criança refinar essa gramática aprendendo que, nessa língua, o sujeito vem antes do verbo nas sentenças. O fato de não precisar criar toda uma gramática do zero facilita e agiliza a aquisição de linguagem.

 

Você pode estar se questionando o seguinte: se a espécie humana possui um mecanismo biológico para adquirir uma língua com facilidade, por que temos dificuldade em aprender outras línguas? O que acontece é que, da mesma forma que os nossos dentes tem um período certo para ocorrer, o período de aquisição de linguagem também tem uma hora certa para acontecer. Ele começa quando a gente sai da barriga da nossa mãe e começa a se encerrar quando temos por volta de 7 anos. Esse período é conhecido como período crítico ou janela de aquisição de linguagem. 

 

Uma vez que esse período é uma etapa biológica, não temos controle sobre ela, ou seja, não podemos escolher quando começar o processo de aquisição de linguagem e quando terminar. Isso quer dizer que, uma vez que o período se encerra, a nossa capacidade de adquirir uma língua naturalmente e sem esforço também é perdida. Sendo assim, se você quiser aprender uma língua depois que o período já se fechou, isso não vai ocorrer naturalmente e sem esforço, mas será um processo árduo e que exigirá um professor de língua estrangeira, materiais, livros e muito estudo. Ou seja, você de fato vai aprender (e não adquirir) essa língua. Que bom seria se o período crítico não se fechasse nunca e a gente pudesse aprender qualquer língua com naturalidade e sem esforço como aprendemos a nossa língua materna.

Texto de Luiz Fernando Ferreira e Maria Eugênia Martins Barcellos
Maio de 2022

A língua é como nossos dentes

Image by Kev Bation
  • Instagram
  • Facebook
  • Linkedin
  • Youtube
bottom of page